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Importância do cumprimento de contrato no pagamento de estadias no transporte rodoviário de cargas

A Lei nº 11.442, sancionada em 5 de janeiro de 2007, representa um marco normativo no setor de transporte rodoviário de cargas no Brasil. Seu principal objetivo é estabelecer diretrizes que promovam a organização e a transparência nas relações comerciais entre transportadores e contratantes, bem como regular as condições de transporte em um segmento que, historicamente, enfrenta desafios relacionados à eficiência e à segurança das operações.

Dentro desse contexto, um dos temas que suscita debates no meio jurídico e prático diz respeito ao pagamento de diárias e, especialmente, das chamadas “estadias” — horas excedentes decorrentes de períodos de espera para o carregamento e descarregamento das mercadorias. Embora, a Lei nº 11.442/2007 não especifique de forma exaustiva os critérios para a remuneração das horas adicionais, a consolidação de entendimentos por meio de resoluções da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a interpretação conjunta dos princípios contratuais e da boa-fé objetiva oferecem subsídios para a aplicação equânime das normas.

Este artigo tem como finalidade fazer um comentário aprofundado sobre a referida legislação, explorando a sua relação com as obrigações contratuais, o papel da boa-fé nas relações comerciais e as implicações jurídicas decorrentes de práticas abusivas, como a retenção da carga para garantir o pagamento prévio de diárias e horas excedentes.

A regulação do transporte rodoviário de cargas no Brasil passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas, em que o crescente movimento econômico e a necessidade de uma logística eficiente impulsionaram a criação de normas específicas para o setor. A promulgação da Lei nº 11.442/2007 insere-se neste cenário, buscando, por meio da normatização, reduzir incertezas contratuais e estabelecer parâmetros claros para a relação entre os prestadores de serviços e os contratantes.

Historicamente, a ausência de um marco regulatório específico gerava conflitos decorrentes da divergência na interpretação dos direitos e obrigações das partes envolvidas. Assim, a lei não apenas criou um ambiente de maior previsibilidade para os operadores do setor, mas também estimulou o aprimoramento de práticas contratuais que preservem o equilíbrio entre os interesses econômicos e os direitos fundamentais dos envolvidos, dentre os quais se destaca a dignidade do trabalhador e a segurança jurídica nas relações comerciais.

Análise jurídica da Lei nº 11.442/2007

A Lei nº 11.442/2007, embora não trate exaustivamente dos pormenores referentes ao pagamento das horas excedentes – as chamadas “estadias” –, delimita o contexto contratual no qual essas questões devem ser analisadas. Em seu cerne, a norma visa garantir que as obrigações assumidas pelas partes sejam cumpridas de forma equilibrada e transparente, respeitando, sobretudo, os princípios da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva.

No tocante às diárias, entende-se que estas representam a contraprestação destinada a cobrir as despesas do motorista durante o período em que se encontra afastado de sua base, abrangendo gastos com alimentação, hospedagem e demais necessidades inerentes a viagens prolongadas. Entretanto, a complexidade surge quando se verifica a ocorrência de tempo excedente – decorrente de eventuais atrasos ou imprevistos nas operações de carregamento e descarregamento –, situação em que o pagamento adicional se justifica para compensar a extensão da prestação do serviço.

A partir do momento em que a legislação não estabelece de forma pormenorizada os parâmetros para a remuneração desse tempo extra, cabe à interpretação das cláusulas contratuais e à regulamentação suplementar, notadamente por meio das resoluções expedidas pela ANTT, assegurar que os direitos dos transportadores sejam preservados sem desvirtuar o equilíbrio contratual. Assim, o arcabouço normativo passa a ser composto não somente pelo texto da lei, mas também pelos instrumentos regulatórios que, conjuntamente, garantem a aplicabilidade dos princípios jurídicos basilares no setor.

Diárias e horas excedentes: a regulação e seus desdobramentos contratuais

No âmbito do transporte rodoviário de cargas, as diárias têm papel essencial para que os profissionais do setor possam arcar com os custos decorrentes de suas jornadas de trabalho. Por outro lado, o pagamento das horas excedentes — ou “estadias” — deve ser compreendido como um mecanismo de compensação pelo tempo adicional que ultrapassa o previsto contratualmente para as operações de carga e descarga.

a) A natureza contratual das diárias

Do ponto de vista contratual, as diárias configuram um componente remuneratório que visa assegurar condições mínimas de subsistência ao motorista. Este valor, geralmente pactuado entre as partes, deve refletir não apenas os custos operacionais, mas também os riscos e a complexidade envolvidos na prestação do serviço. Em razão disso, a clareza na definição das obrigações e dos prazos contratuais torna-se indispensável para evitar litígios e interpretações divergentes.

b) As horas excedentes e o papel da ANTT

Quando as operações de carregamento ou descarregamento ultrapassam o prazo contratualmente estipulado — usualmente fixado em 5 horas — o tempo excedente passa a ser remunerado como “hora extra” ou “estadia”. As resoluções da ANTT têm sido fundamentais para a fixação de um valor adicional que, atualizado periodicamente com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), oferece um parâmetro objetivo para a remuneração desse tempo extra. Essa atualização periódica reflete a necessidade de se preservar o equilíbrio econômico das operações, ajustando o valor à inflação e às variações do mercado.

c) A necessidade de equilíbrio contratual

O contrato de transporte deve ser interpretado como um instrumento dinâmico, que se adapta às particularidades de cada operação. Dessa forma, o equilíbrio entre o direito do transportador de receber uma compensação justa e a obrigação do contratante de efetuar os pagamentos de forma regular é fundamental para a continuidade de uma relação comercial saudável. A existência de cláusulas abusivas, como a imposição do pagamento antecipado das diárias ou a retenção da carga para garantir o adimplemento, pode fragilizar a confiança entre as partes e configurar prática lesiva ao princípio da boa-fé objetiva.

A boa-fé objetiva e o cumprimento das obrigações contratuais

A boa-fé objetiva, princípio consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no Código Civil, impõe que as partes contratuais ajam com transparência, lealdade e cooperação mútua durante toda a execução do contrato. No setor de transporte, essa diretriz é ainda mais relevante, uma vez que o equilíbrio entre o direito de receber uma compensação adequada e a necessidade de cumprimento pontual dos serviços é delicado e sujeito a inúmeras variáveis.

a) Implicações no contexto das diárias e estadias

O pagamento das diárias e das horas excedentes deve ser realizado sem que haja imposição de condições que prejudiquem a execução do serviço principal – a entrega da carga. Exigir o pagamento antecipado como condição para o início ou conclusão do serviço pode ser interpretado como uma violação do pacto contratual, uma vez que transfere a incerteza e o risco para uma das partes de forma desproporcional.

b) A boa-fé como instrumento de equilíbrio

Ao se apoiar no princípio da boa-fé objetiva, os tribunais têm reiterado que qualquer medida que condicione a execução de obrigações essenciais a exigências que ultrapassem o razoável poderá ser considerada abusiva. Esse entendimento visa assegurar que a relação contratual não seja utilizada como meio de coagir ou pressionar uma das partes, preservando, assim, a integridade e a estabilidade do mercado de transporte rodoviário de cargas.

Retenção da carga e configuração de ato ilícito

No campo do direito civil, a retenção indevida da carga como meio de coação para garantir o pagamento de valores supostamente devidos pode gerar a obrigação de indenizar o contratante pelos prejuízos causados. O artigo 927 do Código Civil é claro ao determinar que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Assim, o transportador que adotar essa prática pode ser responsabilizado pelo ressarcimento de danos materiais e, em certas situações, até mesmo de danos morais decorrentes de sua conduta abusiva.

No âmbito penal, a retenção da carga pode ser enquadrada em crimes como extorsão, prevista no artigo 158 do Código Penal, ou apropriação indébita, conforme o artigo 168 do mesmo diploma legal. Caso fique demonstrado que a carga foi retida com o intuito de coagir ou ameaçar o contratante, a conduta pode ser caracterizada como extorsiva, sujeitando o infrator a sanções que incluem detenção e multa. Além disso, se a carga for retida sem a intenção legítima de devolvê-la após a prestação do serviço, há grande possibilidade de que essa atitude configure apropriação indébita.

Ao condicionar a entrega da carga ao pagamento antecipado das diárias ou horas excedentes, o transportador não apenas desrespeita as cláusulas essenciais do contrato, mas também desequilibra a relação comercial, comprometendo a fluidez da operação logística e gerando impactos econômicos e reputacionais para o contratante. A jurisprudência tem sido clara ao classificar essa prática como abusiva e incompatível com o cumprimento integral das obrigações contratuais.

Dessa forma, a retenção da carga como meio de condicionar sua devolução ao pagamento de valores supostamente devidos não tem amparo legal. Os profissionais do setor que se sentirem prejudicados por essa prática devem recorrer à via judicial para buscar a proteção de seus direitos. Isso se justifica especialmente pelo fato de que o transporte rodoviário de cargas é uma atividade de natureza comercial, conforme estabelece o artigo 2º da Lei nº 11.442/2007, que regula a inscrição prévia dos transportadores no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTR-C) da ANTT.

Cabe destacar que a retenção de mercadorias por transportadores somente pode ocorrer nos termos expressamente autorizados pela legislação, como nos casos de armadores, armazéns ou depositários, conforme prevê o artigo 7º do Decreto-Lei nº 116/67, o artigo 644 do Código Civil e o artigo 14 do Decreto nº 1.102 de 1903.

Ainda que algumas interpretações possam divergir, a Lei nº 11.442/2007 não contempla a possibilidade de retenção da mercadoria pelo transportador rodoviário. Assim, evidente que o contrato firmado entre transportador e contratante não se equipara a um contrato de depósito a ponto de justificar a retenção da carga sob a justificativa de despesas ou encargos com estadia.

Diante disso, é importante destacar a necessidade de observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade na interpretação dos contratos de transporte. A autonomia privada, embora essencial nas relações contratuais, não pode ser utilizada como justificativa para práticas abusivas que desequilibrem a relação e prejudiquem a execução dos serviços fundamentais à cadeia logística. Portanto, mesmo que existam cláusulas contratuais que condicionem a prestação do serviço ao adimplemento antecipado de obrigações acessórias, tais previsões são incompatíveis com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

Assim, como operador do Direito, a melhor forma de garantir o equilíbrio contratual e evitar conflitos é a adoção de soluções negociadas e, quando necessário, a busca pelo respaldo judicial. O respeito às normas e aos princípios jurídicos que regem o setor de transporte rodoviário de cargas é fundamental para assegurar um ambiente de negócios justo e eficiente, beneficiando todos os envolvidos na operação logística.

Dessa forma, a análise da Lei nº 11.442/2007, em conjunto com as resoluções da ANTT e os princípios gerais do Direito Contratual, permite concluir que o equilíbrio nas relações de transporte rodoviário de cargas depende fundamentalmente do respeito aos compromissos assumidos pelas partes e da observância dos preceitos da boa-fé objetiva.

Embora a legislação não detalhe exaustivamente os mecanismos de remuneração das horas excedentes – as “estadias” –, a interpretação conjunta dos dispositivos legais e regulamentares revela que o pagamento adicional se configura como um instrumento de compensação legítimo, desde que não seja utilizado de forma abusiva para condicionar a entrega da carga ou impor ônus excessivos ao contratante.

A prática de reter a carga para garantir o pagamento de diárias ou horas excedentes, além de configurar violação contratual, pode ensejar a responsabilização civil e penal do transportador, conforme previsto no Código Civil e no Código Penal.

Por fim, enfatiza-se que a transparência e o cumprimento rigoroso das obrigações contratuais são indispensáveis para a manutenção de um ambiente de negócios saudável e confiável no setor de transporte rodoviário de cargas. As partes, ao celebrarem contratos que envolvam diárias e horas excedentes, devem buscar a harmonização de interesses e a adoção de práticas que garantam a continuidade das operações sem prejuízos para nenhuma delas. A interpretação sistemática das normas, aliada ao respeito aos princípios basilares do Direito, reafirma o papel do ordenamento jurídico como garantidor da segurança e da estabilidade nas relações comerciais.

Nesse contexto, a observância dos parâmetros legais e contratuais é imprescindível para que a relação entre transportadores e contratantes se desenvolva de maneira equilibrada e justa, contribuindo para o fortalecimento do setor e para a efetivação dos direitos fundamentais dos envolvidos. O compromisso com a boa-fé objetiva e com o cumprimento integral dos contratos deve prevalecer, garantindo que a prática de retenção da carga ou quaisquer outras medidas coercitivas não sejam utilizadas como instrumentos de pressão indevida. Tal postura não só resguarda a ordem jurídica, como também promove a confiança e a continuidade dos negócios no mercado de transporte de cargas.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-fev-19/a-importancia-do-cumprimento-de-contrato-no-pagamento-de-estadias-no-transporte-rodoviario-de-cargas/

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